sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Coluna Rede Literária, edição #148, de 09.02.18

Prólogo

Salve, turma que vai cair na folia!

É tempo de Carnaval e cá chegamos trazendo textos de prosa e poesia produzidos em Roraima, todos abordando a questão da migração.
Nestes dias de proliferação do discurso do ódio contra os milhares de venezuelanos que vieram para as terras de Makunaima e foram tornados os causadores de todo mal que se abate sobre o Estado, o olhar especial dos escritores roraimenses é uma luz sobre a escuridão que projetam as centenas de postagens e comentários xenofóbicos em redes sociais todos os dias.
Além dos textos, trazemos também um documentário produzido pelos alunos do curso de Comunicação Social da UFRR abordando a questão da saudade que os migrantes sentem de suas casas e familiares. Ou você achou que a turma viaja e não lembra de mais nada?
Boa leitura e lembre-se, car@ leit@r: tenha empatia, entenda o contexto, seja luz e não o lado negro da força.

Edgar Borges

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PAPO DE TÁXI

Ricardo Dantas*


Foto: Marcos Lima
A cada dia começo a acreditar que o conhecimento absoluto se encontra nos táxis. Ou não...

Hoje, cerca de quatro horas da tarde, calor lazarento, não o típico calor de Boa Vista, estou me referindo ao estágio para o inferno! Daquele calor que sombra alguma adianta, nem mesmo se enterrando debaixo da terra! Nem a pau iria de ônibus, pois na verdade não são ônibus, são fornalhas motorizadas. Eu já estava havia cerca de dez minutos passando calor na esquina do Terminal da Praça das Águas. Passaram três táxis (por um motivo que ainda não descobri, possuem pavor de irem pela Princesa Isabel). Preferem Caranã, Bairro União, menos a Princesa Isabel. Deve ser raiva por ela ter dado alforria aos negros, sei lá, do jeito que as coisas andam hoje em dia, não duvido de nada!

Ao pegar finalmente um táxi, entro, sinto aquele maravilhoso frescor ártico do ar-condicionado e eis que, na minha imensa burrice, falo assim para o taxista:
‒ Bom mesmo é ser taxista, que trabalha o dia todinho no ar-condicionado! ‒ Logo após proferir tamanha imbecilidade, dei-me conta do sacrilégio que havia cometido.
‒ E a gasolina?! E o pneu?! E a manutenção?! E o óleo?! ‒ Esbravejou o taxista.
‒ É mesmo... É mesmo... ‒ Pianinho, apenas concordava. Mas o homem não parava.
‒ Troco de óleo a cada vinte e dois dias! Pneu é a cada três meses, e gasolina gasto cerca de cento e sessenta reais por dia! ‒ As palavras de ordem soavam como um político no palanque.
‒ Verdade, a gasolina está cara... ‒ Era a única coisa que poderia falar. O homem estava puto da vida.
‒ Hum! ‒ Resmungou como que se quisesse dizer: “Em que planeta você vive, abestado?!”.

Nessa altura haviam entrado mais passageiros, e completado a lotação. Paramos no sinal na Venezuela com a Brigadeiro, defronte à sede do IBAMA, e uma mulher comentou:
‒ Como essas pessoas conseguem passar o dia todo nesse sol quente?
‒ Isso não liga pra nada não! ‒ Agora estava na hora do taxista descontar sua raiva nos venezuelanos ‒ Isso aí aguenta tudo! ‒ reparem na forma como ele se referia aos venezuelanos: “isso”...
‒ Coitados... ‒ Compadeceu-se a mulher.
‒ Coitados nada! Ontem estive em Pacaraima e tem mais de mil andando no sol quente! ‒ informou o motorista.
‒ Estão vindo de Santa Elena para Pacaraima? ‒ perguntei.
‒ Nada! Estavam ali perto do Cem, andando mesmo, uns mil, tudo vindo para cá! Olha, Roraima acabou! ‒ O homem falava com ódio ‒ Essas porras estão vindo para cá e só vai ter tragédia! Assalto, sequestro, estupro...
‒ Que é isso, meu amigo! Não pense assim não. ‒ A xenofobia estava no nível máximo e eu queria pular do táxi.
‒ Ô besta! Mas não vai demorar muito e a polícia irá dar cabo de todos eles!
‒ O senhor está falando em extermínio? ‒ A parada estava ficando pesada.
‒ Ô besta! A polícia vai matar sem nem perguntar! Vai ter que ser igual na Venezuela, chegar e meter bala mesmo!
‒ Hômi, não fale isso. Não é correto... ‒ Estava desolado. Realmente o ódio e xenofobia será corriqueiro em Roraima ‒ Vou descer aqui.

*Professor e escritor, autor do livro Meia Pata.


EXODO

Aldenor Pimentel*




*Jornalista e escritor, autor do livro Livrinho da Silva. Mais infos no blog Arte de Aldenor Pimentel.


ESTRELINHA

Vitor de Araújo*

Créditos: GIFMania (http://bit.ly/2BMq5xL) 



Viro estrelinha
Enquanto não viro uma estrelinha.
Nesse tempo meu papa
Vende Pirulin da feira
(Brasileira)
No Sinal da Major o ilha
Com a Vil lhe rói


*Professor de Literatura. Escreve no blog Leve Mediocridade. 


QUESTIONAMENTOS


 Lambe-lambe produzido pela turma do Coletivo Carapanã especialmente para esta edição da coluna Rede Literária. Baixe, imprima, espalhe, lute contra o xenofobismo.





DESESPERANÇA

Elimacuxi*

Foto: : @_5le_


Chegaram-me hoje notícias de longe
de Green Point, de Cape Town
notícias de meninas pretas
lavadas em sangue,
jogadas em fossas
estupradas,
"corrigidas".

Chegaram-me hoje notícias de longe
de homens engravatados
grávidos de ódio
agravando abismos
em nome de deus.

Disseram-me forte hoje,
eu que burguesamente há dias
me esvaio em lágrimas
peito aberto, sangrado, sofrido
lamentando mais um sonho perdido
e desesperando por causa de amor...
eu recebi notícias de longe
que me ferem tal qual o abandono,
notícias que me tiram o sono,
notícias que me ampliam a dor.

Tanta treva
me trouxe à memória
notícias velhas de mis hermanas
putas pobres, travestis,
retirantes nordestinas
e imigrantes venezuelanas.

Sinto como se fosse minha cada ferida
e vago nesse escuro,
minha voz e meu verso são impotentes
embora eu não fique em cima do muro
sinto-me inválida, solitária e triste
diante da violência que avança
com a espada em riste
e veloz, vertiginosa
subverte sujeitos
e criminaliza afetos
nega aos não-normatizados
sua condição humana
e os descarta,
como abjetos objetos...

Históriadora e poeta, autora do livro Amor para quem odeia. Leia mais em seu blog.
http://elimacuxi.blogspot.com.br


SOBRE HUMANIDADES

Arte de rua colada em um poste da cidade de Santiago de Chile (Foto: Edgar Borges)




DESLOCADOS

Gabriel Alencar*

Atroz competição;
Do egoísmo a epítome,
Do interesse desmedido,
A última lesão.

Corre, se deita e se abaixa!
Não olha pra cima
Abraça e olha pra sua amada:
A hora final se aproxima.

Da janela vejo minha cidade
Nos escombros reconheço
Meu pai, minha mãe,
Toda minha verdade.

No refúgio busco reconstruir
A custos altos o que perdi.
Os olhos vorazes me perseguem
Não são mais meus inimigos
São os habitantes do lugar...
Tenho medo que me carreguem.

Minha casa está destruída e só essa vida me resta
Busco um abrigo, que não essa existência funesta.
_______________________________

Victoria, minha filha, tem fome
Pego o pacote de biscoitos
Só tem dois
Dou metade de um pra ela
Como as migalhas.

Hoje faz muito sol
Nossa água está quente.
Vejo um posto policial,
Mais à frente.

Nele me tomam o pouco dinheiro que tenho
Só me resta continuar andando.
Victoria está cansada, pego-a no colo.
Sigo caminhando.

Foram cinco dias nesta batalha
Minha filha hoje tomou uma sopa
E eu estou contente
Mas tem essa dor latente...

Consegui uma matrícula pra minha filha
Ela disse que consegue contar minhas costelas
Eu finjo que acho graça.
_______________________________

Quando o furacão chegou
Todos correram, todos caíram
Tinha um navio, de um amigo
Me carregou.

Minha irmã morreu na viagem
Cheguei numa terra estranha
Todos me olhavam e não me viam.
Uma miragem.

Consegui um emprego
Vendo gelado no palito
Aí levaram todo meu dinheiro
Porque tanto mal comigo?

Aqui faz sol, mas já estou acostumado
Alguns dias até vendo uns bocados
E me resta essa existência.
_______________________________

“Extra! Extra!
Tomaram-lhe a vida!
Extra! Extra!
Quem foi?
Só pode ser…
Foi por causa da bomba
Que ceifou sua família.”

“Últimas novas do dia:
A primeira delas morre no nosso hospital
Sua filha chorava alto, incomodava a todos!
Os médicos disseram que havia outros
Que já estava saindo do normal.”

“No noticiário de hoje
Anunciaram um assalto:
Foi um homem
Que falava engraçado.”
_______________________________

E deslocados, seguem
Por falta de opção
A vida que lhes foi imposta.
Viver não é mais diversão
É buscar alento nos pequenos momentos
Sobrevivendo no locus destas idas.
Quem sabe não exista ainda quem os acolha?
Que entenda o sofrimento, essa falta de escolha?
E assim seria muito melhor
Ter um amparo, em tempos de mal a pior.

*Músico e escritor ao acaso, título de seu blog.


IRMANDADES


 Lambe-lambe produzido pela turma do Coletivo Carapanã especialmente para esta edição da coluna Rede Literária. Baixe, imprima, espalhe, lute contra o xenofobismo.


SOBRE SAUDADES



O documentário "Extraño" foi dirigido pela estudante de jornalismo Nara Michelly. Produzido para a disciplina de Jornalismo Comunitário do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR), aborda as dificuldades, o preconceito e a busca por uma nova vida pelos imigrantes venezuelanos que estão vivendo em Roraima.

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